O humor, precisamente por ser provocador, testa frequentemente os limites dessa liberdade, mas as tentativas de o restringir, sob o pretexto de proteger sensibilidades individuais ou grupos específicos, estão a corroer esse direito essencial. Casos recentes em Portugal, no Brasil e noutras partes da Europa mostram como a linha entre sátira e crime está cada vez mais esbatida.

Em Portugal, o processo movido contra a humorista Joana Marques pelos irmãos Nelson e Sérgio Rosado, da dupla Anjos, ilustra bem esta tensão. Conhecida pelo seu humor mordaz no programa Extremamente Desagradável, Joana está a ser alvo de uma acção judicial por causa de um vídeo satírico publicado em 2022, que ridiculariza a interpretação do hino nacional pelos Anjos durante o Grande Prémio de MotoGP em Portimão. Os queixosos alegam que o vídeo foi "manipulado" e que lesionou gravemente a sua imagem, exigindo uma indemnização de mais de 1,1 milhões de euros. A terceira sessão do julgamento, a 30 de Junho de 2025, contou com testemunhas como Ricardo Araújo Pereira e Fernando Alvim, que defenderam a liberdade de expressão e o carácter humorístico do vídeo. Segundo Pereira, os Anjos estão "mais magoados do que lesados". A próxima sessão, marcada para 11 de Julho, contará com o depoimento da própria Joana Marques. Apesar de ser um processo cível, este caso reflecte uma cultura cada vez mais intolerante ao desconforto, o que põe em risco o direito de satirizar figuras públicas.

No Brasil, a condenação do humorista Léo Lins é um exemplo ainda mais preocupante. Sentenciado a mais de oito anos de prisão por piadas consideradas discriminatórias, Léo Lins foi julgado ao abrigo da Lei 14.532/23 — apelidada informalmente de “lei antipiadas” — que agrava penas quando a alegada discriminação ocorre em contexto humorístico. A sentença da juíza Barbara de Lima Iseppi afirma que o conteúdo promove “violência verbal” e “intolerância” contra minorias. No entanto, a decisão ignora um princípio básico do Direito: a distinção entre animus jocandi (intenção humorística) e animus discriminandi (intenção de discriminar). Punir o humor com base no impacto subjectivo da audiência, sem comprovar dolo, representa um desvio do Estado de Direito e abre um precedente perigoso que criminaliza a expressão artística.

Na Europa, o cerco à liberdade de expressão começou com tentativas centralizadoras por parte da União Europeia. A proposta de alargar a definição de “discurso de ódio” para a incluir como eurocrime, isto é, como crime comum a todos os Estados-membros, falhou devido à ausência de consenso, mas o impulso não desapareceu. Em resposta, Bruxelas impulsionou o Digital Services Act (DSA), um regulamento que, sob o pretexto de combater “conteúdos ilegais”, coloca pressão crescente sobre plataformas digitais e utilizadores individuais para monitorizarem, removerem e justificarem conteúdos potencialmente ofensivos. Embora não criminalize directamente o discurso, o DSA institui um regime de censura preventiva, transferindo para empresas privadas o papel de árbitro moral e legal do que pode ou não ser dito online. Trata-se de uma censura por via regulatória, tecnocrática e silenciosa, mas nem por isso menos perigosa.

A nível nacional, exemplos continuam a multiplicar-se. Em Espanha, o rapper Pablo Hasél foi preso em 2021 por letras e tweets considerados ofensivos à monarquia e às forças policiais, ao abrigo de leis que penalizam o “enaltecimento do terrorismo” e a “injúria à Coroa”. A detenção gerou protestos, mas também confirmou a tendência de criminalizar formas artísticas dissidentes. No Reino Unido, o youtuber Carl Benjamin (conhecido como Sargon of Akkad) enfrentou investigações policiais em 2019 por comentários satíricos, sob acusações de “discurso de ódio”. Apesar de não ter sido preso, o episódio mostra como a subjectividade da “ofensa” pode ser usada para intimidar criadores de conteúdo.

De uma perspectiva liberal, o humor, mesmo quando possa ser considerado, sob a perspectiva de alguém, moralmente duvidoso, não deve estar sujeito a limites legais. Como defendeu John Stuart Mill, a liberdade de expressão deve abranger até as ideias que julgamos erradas, ofensivas ou perigosas. O comediante britânico Ricky Gervais sintetizou essa visão com clareza: “Quão arrogante tens de ser para achares que nunca te vais sentir ofendido?” Numa sociedade plural, sentir-se ofendido é inevitável. Procurar eliminar essa possibilidade através da censura, seja ela estatal, judicial ou social, é um atentado à liberdade.

A ideia de que “ninguém pode ser ofendido” é uma armadilha emocional e política. A ofensa é, por definição, subjectiva. O verdadeiro antídoto para o humor ofensivo não é o silenciamento, mas a crítica, a resposta ou simplesmente a indiferença. Quando o Estado e a sociedade aceitam que palavras — por mais desconfortáveis que sejam, justificam prisões, multas ou processos milionários, o resultado é a erosão da liberdade de pensamento. O humor, enquanto forma de arte e instrumento de crítica social, deve ser protegido precisamente por incomodar. Defender comediantes como Léo Lins ou Joana Marques não é necessariamente apoiar o seu conteúdo, mas sim afirmar o princípio da liberdade. A alternativa é um futuro onde todos terão medo de falar, e uma democracia sem liberdade de expressão é apenas uma ilusão.